quarta-feira, 2 de junho de 2010

TEXTUALIZANDO A PERCEPÇÃO

OS CHEIROS DO MEU DIA

Quarta feira, 6 horas da manhã ouço o despertar da campainha do relógio. Fazia frio, havia várias cobertas na minha cama, limpinhas, ainda exalava o cheirinho do amaciante.

Acendo a luz e estico o braço para pegar o livro que sempre fica ao lado da minha cama, a Bíblia. O cheiro do papel incomoda a essa hora da manhã, embora o livro não seja velho, mas tenho alergia a acaro. Prefiri o áudio. Liguei o computador e ouvi a gravação do livro bíblico de Atos.

Após alimentar o espírito é hora de alimentar o corpo, pão fresco na mesa, o cheiro incendiava o ar da cozinha, acompanhado queijo da região e chá de capim santo, marcavam os aromas mais fortes e ofuscaram o cheiro do melão e dos biscoitos. O gostinho do café da manhã só dura na minha boca até o esfriar do chá para iniciar a escovação, o cheiro do creme dental causa-me enjoou, muda-se a marca, o sabor, mas continua sendo creme dental, com cheiro de creme dental.

Durante parte da manhã andei pelas ruas da vila que moro, Angical. A primeira esquina que passei, a do posto de gasolina, o cheiro de gasolina foi o primeiro dentre outros cheiros desagradáveis em meu dia. Logo à frente, na mesma rua a padaria e novamente o cheiro de pão. Na quitanda, uma salada de frutas, algumas mais salientes como o abacaxi e outras superiores em tamanho, só marca presença com o cheiro ao serem partidas, é o caso da melancia. De fronte as residências os cheiros variavam, ora produtos de limpeza, ora de feijão, carnes e outras delícias, ambos os cheiros denunciavam as tarefas das donas de casa.

Ao retornar para casa fui recepcionada pelo cheiro do meu prato predileto – galinha caipira – esse tomava conta da casa toda, só ‘desapareceu’ no quintal, ao ar livres e com muitas plantas, as rosas de espinho deram um banho de perfume no ar que respirei por alguns minutos.

Voltei aos livros, que lá pelas 10 horas e 30 minutos já eram suportáveis às minhas narinas. Cheiro ruim, de papel. Cheiro bom, de conhecimento!

Às 12 horas o estômago denunciava a fome e a galinha caipira convidava à mesa, comida cozida no fogão a lenha, sabe como é, mais tempo na chapa, o tempero pega bem e o cheiro contamina toda casa.

A tarde foi reservada para o trabalho na escola, saí atrasada, a presa foi tão grande que fiz o percurso de forma tão automática que nem percebi o caminho. Não demorou muito recebi os alunos na sala. Ao me cumprimentarem enquanto ainda estava na porta da sala, passava por ali os mais variados cheiros, perfumes de todas as fragrâncias e vez por outras, odores das piores “fragrâncias” também. O pior deles foi o da garota que me parece que molhou o cabelo sujo e não lavou. Por um minuto pensei que iria colocar minha galinha caipira para fora. Que horror!

Não sei ao certo se giz tem cheiro, mas o seu pó incomoda as minhas narinas, tanto quanto papel às 6 horas da manhã.

Hora do lanche, sobre a mesa dos professores, meu segundo cardápio predileto – farofa de cuscuz com ovos, que ao frigir, já se anunciava nas salas de aula mais próximas da cantina. Pena que não merendei. Pois, não como nada se não estiver munida da escova e do creme dental com seu cheiro detestável.

A sala dos professores movimentada nessa tarde, aproximava-se o dia das mães e confeccionava-se um peso de porta para a “instituição” presenteá-las, cheiro de cola quente e de tecido velho (sobras de outrora) se misturava com o cheiro do lanche. Fiquei neste ambiente o restante da tarde, atualizando o blog da escola ao mesmo tempo pensava, quando tiver um filho quero presente com cara de criança, com cheiro e cor escolhidos pelo meu filho, feito por suas pequeninas mãos, ainda que torto.

Terminado o expediente, hora de ir para casa. Na saída passava uns gados próximos à escola, o cheiro de poeira, misturado com os excrementos dos animais só foram esquecidos pelo meu nariz ao chegar a minha casa e sentir ao subir na calçada o cheiro de carne assada. Quem diria que animais tão fedidos em vida pudessem ser tão cheirosos em morte.

Cumprida a missão da cadeia alimentar, fui para casa de uma colega estudar, novamente os livros, os que moravam há mais tempo em sua estante, menos agradáveis ao meu sensível olfato, enfim sua filha entra no meu dia com uma laranja, bendita laranja que amenizou o aroma de velhacaria no ar. E para adoçar a boca, goiabada, pena que, amarga a consciência, levando-me a sair em disparada para casa em busca da escova e do infeliz creme dental.

O momento em que há uma mistura de cheiros agradáveis são os inúmeros banhos num dia ensolarado. O ritual é o mesmo. A própolis do sabonete líquido, o frescor do sabonete íntimo, o doce do xampu de chocolate e óleo de amêndoa para finalizar a primeira etapa. Depois o ritual continua no quarto, desodorante de erva doce, colônia de água fresca, creme para pentear as madeixas e outro creme para os pés ressecados com cheiro de sei lá o que... Já não sei se estou cheirando ou fedendo com tanta mistura.

Finalzinho da noite produzo esse texto e penso nas coisas que supostamente não tem odor, que cheiro deveria ter? O amor, a paz, a vida?... Certamente teria o cheiro da Dama da Noite[1], que entra pela janela do meu quarto neste momento.

[1] Planta ornamental com belas e cheirosas flores que só se abrem a noite.

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