quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O PERCURSO DO ESTUDO LITERÁRIO DA OBRA LEITE DERRAMADO


"A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fumaçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto".
CHICO BUARQUE

É brilhante a maneira como Chico Buarque condensa 100 anos de história em menos de duzentas páginas. Em uma escrita alinear ele narra o monólogo de um centenário que percorre os quatro cantos do mundo sem sair de uma enfermaria.
A leitura dessa obra-prima é envolvente, aparentemente fácil, só que as 200 páginas se desdobram em 500, 1000... Sei lá! Depende do tamanho da curiosidade do leitor e as entrelinhas vão se desdobrando, à medida que a fada Sol vai batendo sua varinha de condão, com o auxílio da fadinha Nanda.

Foram quatro meses para compreendermos as quase 200 e algumas páginas do Leite Derramado e a primeira batida da varinha de condão foi no autor Chico Buarque. O convite foi: “Ao som de Noite dos mascarados, confeccione sua máscara, venha ao baile e prepare-se para viajar no “trenzinho do caipira”, “abre alas” para a passagem de um século de história”.
Pai, afasta de mim esse cálice... ainda não foi um protesto, mas mesmo calada a boca, resta o peito e Chico pergunta como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Ele tinha razão, apesar de você, ditadura, amanhã há de ser um novo dia. Você vai se dar mal, etc e tal... Chico se autoexilou, em meio à ditadura militar brasileira. Eulálio Neto, neto do Eulálio que narra o monólogo no Leite Derramado, também tinha o sangue político da família, era comunista, foi preso e não veio a conhecer os sucessivos Eulálios que vieram depois.

Os 100 anos do Sr. Eulálio não começam por aí, suas histórias são do período do Império e suas memórias são mais velhas ainda, são do tempo de D. Maria, a Louca. Esse Senhor que se orgulhava das viagens que fazia até Crans-Montana nos Alpes Suíços, ao berço da cultura, Paris, gabava-se inclusive da qualidade da cocaína que consumia e das “putas” com quem ele e o seu pai ficavam. Entretanto, sua origem nobre era suspeita. Como o próprio narrou:

"Muitos de vocês, se não todos aqui, têm ascendentes escravos, por isso afirmo com orgulho que meu avô foi um grande benfeitor da raça negra. Creiam que ele visitou a África em mil oitocentos e lá vai fumaça, sonhando fundar uma nova nação para os ancestrais de vocês. Viajou de cargueiro até Luanda, esteve na Nigéria e no Daomé, finalmente na Costa do Ouro encontrou antigos alforriados baianos na comunidade dos Tabom, assim chamados porque da nossa língua conservaram o cacoete de falar tá bom. E diante do meu avô repetiam seu bordão, como a corroborar que era uma terra auspiciosa, a Costa do Ouro, para tal empreendimento. E após um acerto de parceria com os colonizadores ingleses, meu avô lançou no Brasil uma campanha para fundação da nova Libéria".

O velho era traficante de escravo e, como legado, deixou para nosso querido narrador, o preconceito. Nem mesmo o amor à bela Matilde, moça de pele escura, o ajudou a superar essa herança que lhe trouxe muita amargura.
Discretamente Chico denuncia o preconceito racial e social, “Matilde é uma quase castanha, vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler”. Outra temática da obra é a violência contra a mulher, pois o ciúme doentio que tinha de Matilde, levava seu marido a ofendê-la constantemente. Sobretudo quando a vê dançando maxixe com o ex-escravo Balbino vestido em uma calça justa roxa. E aquele “Jura, jura, jura, de coração/ para que um dia eu possa dar-te o meu amor/ sem mais pensar na ilusão” servia como uma punhalada no coração ciumento do nosso narrador. Em um único parágrafo o autor reproduz a cena, com uma riqueza de detalhes que leva qualquer leitor contemporâneo a desejar antecipar a história e fazer valer a Lei Maria da Penha em plena República.

Falando em República, Eulálio refere-se a esse período ao dizer que “o momento político é delicado, ministros vacilavam” e muitas horas ele e seu amigo Dubosc amargaram em antessalas do governo. Paralelo a essa leitura, mais uma batida da varinha de condão e surgem as equipes rosa X amarela em uma gincana que nos lembra acontecimentos que abalaram o mundo inteiro como a I e a II Guerras Mundiais e que depois inspiraram os poetas Vinícius de Morais e Gerson Conrad a compor a canção Rosa de Hiroshima. Mesmo em meio a desgraças, a arte vive a revolução. No Brasil a Semana de Arte Moderna chamou a atenção. Eulálio apreciava a arte internacional, no seu repertório, estavam o expressionismo, a renascença... cresceu ouvindo Mozart e, claro, se indignava ao ouvir sua pequena Maria Eulália ser embalada ao som de Macumba-Gegê, entoado pela mãe.

E para não dizer que não falei das flores, foi caminhando e cantando e seguindo a canção, que encontramos Rubinho e Adriano, parceiros neste empreendimento, e vimos que somos todos iguais, braços dados ou não.

Passado o período da censura, veio a globalização e, no Brasil, as privatizações, a corrupção causaram revolta e revoluções. Nas ruas, Caras Pintadas fizeram manifestações. As Diretas Já! foram outra conquista da nossa nação.

Na última década, ataques terroristas abalaram a grande potência, mas foi a crise econômica mundial que veio como uma gripe suína para a nossa perturbação. Descobrir tudo isso não foi com pó de pirlimpimpim não, foi com muita pesquisação.

Com a batida da varinha de condão fomos parar em um autódromo, demos a largada, entre o ponto de partida e de chegada foi feita a intertextualidade. O convidado de honra foi Machado de Assis com sua obra Dom Casmurro. Há alguns pontos em comum entre a obra do convidado e a obra estudada. Ambos os protagonistas são ciumentos das suas amadas e as incógnitas são: Capitu traiu Bentinho? E Matilde? Traiu Eulálio? Para apimentar ainda mais o suspense Chico deixa outra dúvida no ar: – De que morreu Matilde? Não se sabe ao certo, cabe ao caro leitor desvendar, se é que ela morreu! Ao pobre Eulálio, só restava chorar sobre o “leite derramado” e o desejo, a necessidade e vontade de ter sua história registrada para a posteridade.
E a nós cursistas do GELIT Leite Derramado só nos resta dizer: Solange Marciel amante de Chico, amante de Machado, amante da pátria, Sol que irradia organização, conhecimento, colaboração e ética, em essência, apenas um ser humano a quem admiramos, nosso muito obrigado por ter contribuído com o crescimento da nossa árvore do conhecimento.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns!

Fico muito feliz lendo, vendo, sentindo, saboreando...o crescimento intelectual, emocional, didático, pedagógico...de vida...de todos nós.
Concordo plenamente...em relação a Solange, ela é tudo isso, e muito mais.
Abraços
Soraya