terça-feira, 27 de outubro de 2009

CineContexto


CRÍTICA AO FILME CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS:
UMA PROPOSTA EDUCACIONAL

CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS. Direção: Marcelo Gomes. Roteiro: Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Karim Aïnouz. Brasil: Imovision, 2005, 90 min.

O filme Cinema, Aspirinas e Urubus é o primeiro longa metragem do cineasta pernambucano Marcelo Gomes. A idéia surgiu no convívio familiar, seu tio-avô Ranulfo Gomes relatava acerca de um alemão que nos anos 40 aventurou-se pelo nordeste brasileiro vendendo aspirina, remédio vindo da sua terra natal, Alemanha. Esse é o pano de fundo do filme.

Marcelo Gomes homenageia o tio, sua fonte de inspiração, por batizar um dos protagonistas com o seu nome – Ranulfo (o ator baiano João Miguel), o qual vivencia o nordestino que contracena com o alemão Johann (Peter Ketnath). Essas duas personagens se encontram na estrada e aventuram-se, caatinga adentro, em um caminhão, caracterizando o filme como road-movie. Cada um foge da sua identidade, mas ambos buscam sua identificação. A composição individualizada desses dois homens de mundos tão diferentes, mas que buscam os sonhos, é o patho que os movem e por fim os separam.

A verossimilhança compõe a unidade dramática do filme, até mesmo a ausência de um fundo musical é um componente básico. Pois, por meio do silêncio, há a denuncia à solidão das personagens, a angústia de ambas frente à situação sócio-política que vivem. Enfim, torna as cenas mais marcantes. Este filme é um marco no cinema nacional, que está amadurecendo gradativamente, caracteriza-se como cinema popular de arte. Marcelo Rocha brinca com o olhar do telespectador, a mudança de dolly out para dolly in, causa estranheza. Como boa parte do filme se passa dentro do caminhão os ângulos são focados em dolly in, ou seja, com a câmera próxima do objeto.

Os anos 40 marcam a temporalidade dos acontecimentos, o mundo em guerra, o Brasil se alia aos Estados Unidos da América, inimiga da Alemanha. A produção de borracha se intensifica, o que demanda um número maior de mão de obra não qualificada. Diante da demanda nos seringais da Amazônia e da seca no Nordeste, esse foi o destino de muitos nordestinos, entretanto trabalhar para fornecer borracha para os EUA era só uma extensão da miséria vivida anteriormente. Com esses últimos acontecimentos, a aspirina fica proibida no Brasil. O tempo dramático muda a cada cena, o rádio que anuncia as notícias locais e mundiais é um ícone que simboliza a cadência, sobretudo de Johann, que traz a tona várias lembranças. Na resolução, aparece a figura do urubu, o qual é permeada de um subtexto, que nos leva a algumas leituras, dentre elas, uma alegoria a resistência do povo nordestino ao lutar pela sobrevivência.

Essa obra prima de Marcelo Gomes, é um retrato do sertão, os figurinos, a linguagem, não sobressaem nas cenas, mas as tornam mais reais, sem apelação. A escolha de atores que nasceram no próprio cenário que representam, inclusive o alemão, deu um tom de originalidade na composição das personagens. O cineasta foi feliz ao condensar em 90 minutos um roteiro que perpassa por diferentes espaços, entrelaçando-os de forma clara, compreensível, entretanto sem perder de vista a estética fílmica do Cinema Novo.

É um filme para assistir pelo simples prazer de apreciar uma obra de arte com boa qualidade. Mas, também, pode ser indicado para estudos mais específicos em algumas áreas de conhecimento. A sua ethos enriqueceria as discussões nas aulas de Filosofia, além disso, as questões relacionadas à identidade, identificações e preconceito, poderiam render o bate papo com os alunos. Independente da disciplina é preferível que o filme seja exibido para educandos das séries finais do Ensino Fundamental – 7ª e 8ª séries – há algumas cenas picantes.

Nessas séries indicadas os professores de Língua Portuguesa podem analisar a linguagem regional e/ou a produção de sinopse, resenha crítica, propaganda, visto que o filme é parte da nossa realidade. A linguagem fílmica não pode passar despercebida ao estudar esses gêneros textuais nesse contexto. Antes de assistir o filme, levantar hipóteses a partir de uma cena ou de um trecho de resenhas já produzidas. Isso é válido para as outras disciplinas também, pois cria expectativa e contribui para formação de uma platéia mais receptiva.

História não poderia ficar de fora, todo o conteúdo do filme é histórico. O diferencial entre o filme e a maioria dos livros Didáticos de História é a forma como a temporalidade é apresentada, os fatos locais, no Brasil e no mundo são simultâneos e se cruzam. As questões econômicas aparecem numa intensidade, sob a influencia da globalização, que possibilita um trabalho interdisciplinar com Geografia. Vale ressaltar que a interdisciplinaridade pode ser feita entre todas as disciplinas mencionadas, cabe ao professor que assumir a atividade criar esse hipertexto.

Sou professora de Língua Portuguesa, na Escola Municipal de Angical, nas séries finais do Ensino Fundamental, experimentei as sugestões citadas acima em uma turma de 9º ano (8ª série). A princípio, quando mencionei que o filme foi gravado no nordeste, logo uma aluna comentou, filme brasileiro e gravado no nordeste, não presta. Essa opinião foi o ponto de partida para as questões relacionadas à identidade e identificação. O trailer e as resenhas os ajudaram a levantar algumas hipóteses sobre o filme, tramitar um pouco por tempos paralelos e espaços diferentes. Discutimos o contexto histórico, a linguagem fílmica e a estrutura do gênero textual resenha. Nas resenhas que produziram a maioria concluíram que é um bom filme para estudarem os conteúdos escolares, mas que não assistiriam por lazer, acharam monótono, porém contraditoriamente, reflexivo.

O filme pode até não dá conta de abarcar essa gama de conteúdos, no primeiro momento, nas atividades escolares. Entretanto se conseguir sensibilizar o olhar desses jovens telespectadores em relação a nossa realidade, já é um grande feito, que certamente enobrecerá a produção fictícia do cineasta Marcelo Rocha.

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